Não existem juros simples. Nem juros compostos. O falso dilema do STF.

Posted on 26/04/2016. Filed under: Finanças, Política | Tags:, , , , |

O Brasil é um país interessante. Volta e meia temos que reinventar a roda, rediscutir temas já pacificados em todo o mundo.

O caso da ciclovia do RJ é um clássico do retrocesso, do revisionismo intelectual e tecnológico que vivemos. 2 corpos de engenharia, da prefeitura e da Concremat fazem projetos técnicos. O básico inicial e o executivo. E ninguém calcula o impacto de um evento corriqueiro (ondas batendo).

Não é incapacidade de calcular, pois um aluno de engenharia com 1 período de hidrodinâmica calcula isso. É outro nível de incompetência. Seria como um cirurgião esquecer de fechar o paciente.

Isso me lembra uma resenha crítica que escrevi sobre o filme Idiocracy, em 2011. Nos EUA dos anos 2505 não se consegue fazer projetos de engenharia, dada a mediocridade da população. Parece que no Brasil de 2016 também não. Pelo menos chegamos primeiro em algo!

Mas o caso de “revisionismo intelectual” nesse caso é dos estados, superendividados, que querem que os juros acumulados sobre o principal de suas dívidas corram sob o regime de juros simples e não de juros compostos.

Aqui vou deixar claro que não li os contratos para saber se há caminho jurídico, mas entendo que os contratos devam se submeter à lógica financeira e não ser distorcidos por advogados competentes para “encaixar” uma lógica disfuncional e caótica. Potencialmente destruidora.

 

Num empréstimo há: Taxa, periodicidade e maturidade.

Qual é a taxa do empréstimo? 10%? Errado! Tem que ter a periodicidade. É 10% ao ano, 15% ao ano, 12% ao ano com pagamento de juros semestral e assim vai.

Nos EUA, quando falamos em 12% ao ano, capitalizados mensalmente, significa que teremos 1/12 avos dessa taxa aplicados ao mês. Seria 1% ao mês.

A taxa SELIC, ou o CDI, costumam ter cálculo diário, mas são explicitadas em termos anuais (14,25% e 14,13% respectivamente).

Não existem juros simples ou compostos, essa nomenclatura é apenas um indicativo de como se procedem os cálculos, mas, na prática, o que existe é a taxa e a periodicidade, além do regime de pagamento ou acúmulo dos juros no saldo devedor.

 

10% ao ano, empréstimo de 1.000.000, período de 10 anos.

É pacífico que, ao final do primeiro ano, o saldo devedor estará em 1.100.000. A taxa de 10% ao ano, do ano 2, incidirá sobre 1.000.000 ou 1.100.000?

Se incidir sobre 1.000.000 o que acontecerá com os outros 100.000 devidos?

Não haverá incidência de juros sobre eles? Por quê? Qual a justificativa para que esses 100.000 não se submetam aos juros do empréstimo? Qual a cláusula contratual que cria um montante da dívida sobre o qual não correm juros? Há alguma dúvida de que os 100.000 são devidos?

O período é anual, o montante devido é 1.100.000. Qual a fundamentação matemática para que a taxa anual do segundo ano não seja aplicada sobre os 100.000 de juros do primeiro ano?

Pode até haver fundamentação jurídica, seria um estupro à matemática financeira, mas no Brasil a lógica parece render-se ao casuísmo.

Se a taxa fosse de 100% em 10 anos, não haveria dúvida de que o montante devido seria de 2.000.000 em 10 anos, sem capitalizações parciais.

Não há juros compostos ou juros simples, são ferramentas matemáticas apenas, usadas para agilizar os cálculos a depender das condições contratuais. O que há são as condições do contrato de empréstimo. É taxa anual? É capitalizada mensalmente? Acaba em 10 anos? O devedor pagará os juros intermediários ou acumulará até o final dos 10 anos?

A prova da bobagem

Imagine um mundo onde fosse possível captar (tomar empréstimo) a 12% ao ano e investir a 12% ao ano.

R$ 1.000.000, taxa de 12% ao ano, maturidade em 11 anos.

Imagine que seja possível pagar o saldo devedor somente ao final, a juros simples.

O tomador (devedor) pega, então, os R$ 1.000.000 e investe a 12% ao ano, com maturidade de 1 ano. Os R$ 1.120.000 do primeiro ano, ele retira ao final do contrato e reinveste a 12% ao ano. Assim sucessivamente até o 11º ano.

Em 11 anos, o devedor vai pagar, a juros simples, R$ 2.320.000 (R$ 1.000.000 + 11 x R$ 120.000)    .

Porém, ao reinvestir a 12% ao ano, com maturidade de 1 ano, TAMBÉM POR JUROS SIMPLES (pois reaplicará o ganho mais o principal), por 11 anos seguidos, ele terá R$ 3.478.550, o que lhe daria um lucro de R$ 1.158.550.

O que o impediria de fazer isso?

Por que juros “simples” de 12% ao ano com maturidade de 1 ano, reinvestidos por 11 anos seguidos, dariam um retorno muito maior do que juros “simples” de 12% ao ano acumulados por 11 anos seguidos?

Aí o leitor pode pensar: – Ah, mas o primeiro está a juros simples, o segundo a juros compostos! Esse é o meu ponto. Não há juros simples ou compostos, apenas as cláusulas contratuais. Nada me impediria de retirar meu dinheiro ao final do primeiro ano reaplicar aos mesmos 12%. Isso transformaria “juros simples” em “juros compostos”, o que  demonstra que esses conceitos não dizem respeito aos juros em si, mas ao tipo de contrato.

Ainda que os juros de curto prazo sejam menores, sempre haverá um horizonte suficientemente longo para que haja lucro na operação, com risco zero.

E nem é verdade que SEMPRE as taxas de juros de curto prazo serão menores do que as de longo prazo. Em pleno ano de 2016 os juros para 2019 no Tesouro Direto (12,6% ao ano) são menores do que os de curtíssimo prazo (14,25% ao ano).

Que me desculpem os senhores governadores, os senhores advogados, mas devedor que quer corrigir seus saldos devedores a juros simples e aceita se capitalizar a juros compostos não age de boa-fé. Não vai ser assim que vão sair do buraco.

Escrevo com absoluta certeza de que o STF vai negar o pleito dos governadores. Não faz qualquer sentido. Se aprovarem, preparem-se. Nenhum contrato estará a salvo no Brasil.

E tudo por um revisionismo conceitual, intelectual e tecnológico. E casuístico.

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8 Respostas to “Não existem juros simples. Nem juros compostos. O falso dilema do STF.”

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Olá Portinho, como vai?

O stf persiste em estuprar a lógica, e deixou em aberto a decisão da revisão da cobrança de juros. Só daqui a 60 dias se nao houver acordo entre os estados endividados e a União.

Se for o caso, pois não sei se na dívida pública estão incluídas as dívidas de cada estado, há a possibilidade dos estados pedirem para o governo refinanciar as dívidas através da emissao de mais títulos via tesouro nacional?

E agora?

Oi Bruno, a União assumiu as dívidas mobiliárias dos estados, o volume de títulos é o que está com o governo federal.
O efeito de uma repactuação no “montante” das dívidas dos estados com a União não é o que, efetivamente, importa. O que importa é o fluxo de pagamentos desses empréstimos. Se a União parar de receber ou se o serviço da dívida dos estados cair muito, a União vai ter que pagar do próprio bolso a diferença.
Normalmente esses valores dos estados são usados para pagar os juros da dívida pública e as amortizações. Se reduzir pela metade, a união pagará o resto.

Olá Portinho, ainda estou lendo o seu livro para a ADVFN adaptando o método INI aos investimentos na Bovespa. Até por isso me reservo no direito de discordar, ou aprovar com ressalvas esse post (aliás muito didático) quanto à questão jurídica. O que acontece é que os dois ladrões fazem um jogo de empurra – a União, que extorque mais, e os Estados, que extorquem menos. Os estados tiram dinheiro da educação básica e da saúde para pagar a Dilma fazer o PAC e brincar com o dinheiro do BNDES, CAIXA, BB… Aí é que mora o problema.
Não é por outro motivo que nosso congresso votou pelo impedimento em razão da fraude fiscal do governo. Nossa dívida, seja calculada de que maneira for, aumentou consideravelmente apenas nos últimos anos 2 anos.
Também não li o processo, mas por estar no STF significa que o direito de fundo é constitucional, ou seja a relação dos Estados com a União, que historicamente no Brasil é mal resolvida ($$$$ demais para a U e $$$$$ de menos para os E). O que os Estados pedem significa diminuir o fluxo de dinheiro mensal à U de seus orçamentos, alguns dos quais quebraram e imagina onde vão tentar buscar salvação…

Oi Fernando. Esse espaço é para a discordância saudável mesmo. Seja sempre bem vindo.
A relação entre os entes federativos é desequilibradíssima. Quem está mais perto de nós é quem arrecada menos, quem está mais distante, arrecada mais.
Talvez fosse a hora de reduzir o poder do presidencialismo por aqui.
Mas a questão poderia ir por outro caminho, que não a discussão sobre se incidem juros simples ou compostos. Temo que uma decisão do STF nesse sentido possa confundir as coisas no mercado financeiro.
Dívidas de todas as ordens são calculados com base no saldo devedor acumulado (juros compostos), qualquer parcelamento funciona assim.
Se a decisão for ampla, acho que a instabilidade jurídica pode se espalhar.
Mas concordo que a hipertrofia do executivo federal está destruindo o pacto federativo.
A Lei 11.803 fez com que a união praticamente não mais precisasse utilizar recursos ordinários para gerir a dívida. Mas os estados continuaram pagando como sempre.
A bagunça orçamentária está instalada. Tá na hora de mudarmos esse quadro.

Olá Portinho, parabéns pelo post. Sou novo por aqui mas já me habituei a ler seu blog. Discordo, contudo, (sem saber exatamente como se deu o cálculo da ciclovia na Av. Niemeyer, apenas alucinando aqui) que não tenha ocorrido cálculo para a situação apresentada, por entender, como vc bem disse, que trata-se de uma situação possível (apesar de tb discordar que aquela onda seja um evento corriqueiro). Imagino que cálculos técnicos tenham sido feitos, porém, na minha opinião, a decisão de implementar a obra de engenharia para a situação de estresse não foi aprovada!! Isso que me preocupa. Um abraço!

Oi Aloysio. Eu vi no jornal ontem que há um jogo de empurra entra a prefeitura e a concremat. Uma diz que fez o projeto simplificado e a executora deveria fazer os cálculos estruturais adequados. A executora diz que seguiu ipsis literis o projeto da prefeitura.
Aí eu pergunto: Que engenharia é essa que constrói a estrutura de uma passarela de pedestres num ambiente que recebe empuxo violento de baixo?
Como o cálculo estrutural era simples, não foi um “erro” trivial, foi uma bandalha inacreditável.
Pode ser isso que você disse, que a prefeitura não tenha aceitado pagar pelo projeto correto.
Mas eu tenho agora, após o evento, sérias dúvidas se é realmente possível construir uma ciclovia lá. Ainda que o cálculo estivesse correto e ela intacta, pelo impacto no ônibus, creio que só a onda, mesmo sem a queda da estrutura, já seria suficiente para matar uma pessoa, ou levar dezenas ao mar. Acho que vão acabar demolindo.

“Que me desculpem os senhores governadores, os senhores advogados, mas devedor que quer corrigir seus saldos devedores a juros simples e aceita se capitalizar a juros compostos não age de boa-fé. Não vai ser assim que vão sair do buraco.”

Gostei desse trecho. Só gostaria que alguém explicasse qual o fundamento – matemático, financeiro ou jurídico – para a mesma União, que agora se apresenta como “vítima” desse revisionismo, alegar, em suas contestações e recursos judiciais, que os juros devidos por ela devem ser calculados de forma simples, evitando o anatocismo. Ou seria má-fé dos advogados da União?

Sem olhar a natureza da dívida, diria que também é casuísmo. Infelizmente há leis que explicitamente não incorporam os juros ao saldo devedor (acho que a lei trabalhista é assim). A natureza, todavia, é diferente da da dívida dos estados. É um outro direito. Mas, na prática, não há vítimas institucionais (estados ou união). Só nós somos vítimas. Se houver revisão da dívida, o buraco será pago por todos nós, com mais dívida e mais juros.


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  • Paulo Portinho

    PAULO PORTINHO, engenheiro com mestrado em administração de empresas pela PUC-Rio, é autor do Manual Técnico sobre o Método INI de Investimento em Ações, do livro "O Mercado de Ações em 25 Episódios" e do livro "Quanto Custa Ficar Rico?", os dois últimos pela editora Campus Elsevier.

    Paulo atuou como professor na Pós-graduação de Gestão Social da Universidade Castelo Branco e na Pós-graduação oferecida pela ANBIMA de Capacitação para o Mercado Financeiro.

    Atuou como professor da área de finanças e marketing na Universidade Castelo Branco e no curso de formação de agentes autônomos do SINDICOR.

    Como executivo do Instituto Nacional de Investidores - INI (www.ini.org.br) entre 2003 e 2012, ministrou mais de 500 palestras e cursos sobre o mercado de ações, sendo responsável pelo desenvolvimento do curso sobre o Método INI de Investimento em Ações, conteúdo que havia chegado a mais de 15.000 investidores em todo o país, até o ano de 2012.

    Representou o INI nas reuniões conjuntas de conselho da Federação Mundial de Investidores (www.wfic.org) e da Euroshareholders (www.euroshareholders.org), organizações que congregam quase 1 milhão de investidores em 22 países.

    Atuou como articulista do Informativo do INI, do Blog do INI, da revista Razão de Investir, da revista Investmais, do Jornal Corporativo e do site acionista.com.br. Foi fonte regular para assuntos de educação financeira de veículos como Conta Corrente (Globo News), Infomoney, Programa Sem Censura, Folha de São Paulo, Jornal O Globo, entre outros.

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