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Universo 25: O que o apocalipse “zumbi” dos ratos tem a nos ensinar?
Entre as décadas de 1940 e 1970 o pesquisador John Calhoun realizou vários experimentos com ratos para ver como as sociedades se comportariam diante da superpopulação. O mais famoso deles, o Universo 25, criou um paraíso de abundância para uma comunidade de ratos que, bem antes de atingir a superpopulação, sucumbiu e foi extinta por seus próprios atos. De forma bastante violenta e surpreendente.
Ao final do artigo conto essa história, que é assustadora, pois se parece muito com nossa sociedade ocidental pós-moderna, mas antes disso, preciso fazer uma introdução para explicar o que considero ser, realmente, a principal contribuição do experimento de Calhoun para o debate sobre as sociedades atuais.
Não, o problema não é a superpopulação.
Esse experimento precisa ser revivido e recontado, 50 anos depois de sua conclusão, mas com enfoque diferente.
Calhoun era um “martelo que só via prego”, ou seja, como ele estudava os efeitos da superpopulação, tentava explicar todo o ocorrido, e foram fatos realmente assustadores, através desse único prisma. O problema é que, como o experimento criou um paraíso de abundância, muitos dos verdadeiros problemas que enfrentaríamos com a superpopulação, como escassez de água, alimento, recursos, assistência médica e espaço, não ocorreram, e mesmo assim a população de ratos se extinguiu. O que nos leva a buscar explicações alternativas.
O problema da abundância
O experimento de Calhoun traz luz para uma questão que abordo no meu livro “Tudo é Impossível, Portanto Deus Existe”. O Ocidente rico tem criado situações de abundância para parte de sua população, e o efeito da falta de escassez sobre a organização das sociedades é completamente desconhecido.
Nós conhecemos o efeito potencialmente nocivo da abundância em grupos pequenos, como cortes de monarquias absolutistas, bilionários, ditadores e outros indivíduos com recursos ilimitados e sem riscos relevantes aos seus desejos. Sabemos que podem, com facilidade, perder o contato com a realidade de quem vive na escassez da luta diária, gerando tensões que acabaram, no passado, em revoluções sangrentas e quedas de regimes totalitários.
A história de todos os seres vivos que se organizam em sociedades complexas tem um fio em comum, que é a necessidade incessante de troca de energia e de proteção. Ambas as demandas estão associadas diretamente à manutenção da vida, que é um objetivo natural para todas as espécies. Essas afirmações são inequívocas e facilmente comprovadas por mera observação da história da evolução.
Escassez foi, e é, o problema mais relevante de todas as sociedades e de todos os indivíduos. Nisso Marx e os Libertários tinham contato. Enquanto um achava que a economia era tudo (economia é a ciência que estuda o problema da escassez), os outros chamavam o que unia essas relações humanas de Lei Natural, que nada mais é do que a organização natural para o enfrentamento cada vez mais eficaz da escassez (proteção à vida e à propriedade, energia e abrigo).
Em resumo, somos seres sociais forjados no risco, nossos valores mais básicos foram construídos com fundamento no enfrentamento do problema que assolou, e assola, todos os seres vivos: luta pela energia e pelo abrigo, luta pela vida e pela espécie.
Levanto a hipótese, no livro, de que grande parte da confusão da sociedade ocidental pós-moderna deriva da abundância, ou mais precisamente, da crescente falta de percepção de escassez material básica, por uma elite desconectada das necessidades primazes.
Como o colapso da sociedade utópica dos ratos nos ajuda a demonstrar essa hipótese?
De forma resumida, John B. Calhoun criou um ambiente paradisíaco para os ratos. A ração de comida e água era ilimitada. Os indivíduos foram selecionados a dedo entre os mais fortes e saudáveis (4 casais de início). O ambiente era limpo constantemente. Ao menor sinal de doença que poderia se espalhar, o risco era retirado do convívio. Havia 256 ninhos que abrigariam confortavelmente 15 ratos cada um, num total de 3.840 ratos que poderiam conviver no Universo 25 sem desconforto espacial.
O objetivo do pesquisador era, dadas as condições perfeitas criadas, atingir a superpopulação e estudar a influência nos indivíduos. Mas nem chegou perto disso.
Segue um breve relato dos principais fatos:
- Durante os primeiros 300 dias as coisas transcorreram bem e a população de ratos foi dos 8 iniciais para 620.
- A partir do dia 315 do experimento, algumas coisas pareciam mudar. No início, a população de ratos dobrava a cada 55 dias, após um ano, passou a dobrar a cada 145 dias, o que era estranho, pois havia ainda muito espaço, para abrigar uma população 6 vezes maior.
- Houve mudanças bastante perceptíveis no comportamento dos machos e fêmeas. Os machos, sem desafios territoriais ou de busca por comida (abrigo e energia), começaram a atacar uns aos outros sem nenhuma razão aparente. Além disso, passaram a não proteger as crias, e até a atacá-las, o que levou a um rompimento na relação parental, culminando, eventualmente, em uma redução drástica na procriação.
- As fêmeas também se tornaram agressivas e acabaram, eventualmente, atacando a própria prole, o que reduziu praticamente a zero a procriação.
- Alguns grupos de ratos machos passaram a acasalar, de forma violenta, com qualquer outro rato que aparecia, macho ou fêmea.
- Outros grupos passaram a matar e a comer outros ratos (canibalismo), mesmo havendo abundância de comida e água.
- Ratos passaram a se agrupar em números elevados, 40 a 50, em ninhos apropriados para 15, enquanto ninhos vazios e limpos, a apenas centímetros de distância, permaneciam vazios.
- O que mais chamou a atenção do pesquisador, foram ratos que decidiram se afastar completamente da sociedade, para viverem sozinhos nas áreas mais altas do Universo 25, aos quais o pesquisador chamou de “os bonitos” (the beautiful ones).
- Esses ratos não faziam nada, exceto comer, dormir e cuidar da aparência, se limpando com frequência e alisando o pelo. Eram chamados de bonitos, pois como não se envolviam em nenhuma briga, tinham a pele e o pelo intactos. O resto da população tinha marcas de sangue no pelo, cicatrizes e rabos mastigados.
- Os bonitos, em um primeiro momento, pareciam ser interessados, focados e talvez os mais inteligentes do Universo 25, mas, testados, não conseguiam responder a estímulos evolutivos básicos, o que levou o pesquisador a concluir que seu afastamento da sociedade não foi por inteligência superior, de se manter afastado do caos e tentar sobreviver, mas por estupidez.
- A partir do dia 600 a população atingiu 2.200 indivíduos e começou a declinar até que o último rato morreu alguns meses depois.
Similaridades com nossa sociedade ocidental pós-moderna
Minha interpretação do apocalipse dos ratos é que foi causado por forçar uma estrutura social forjada sem o risco de escassez. Essa sociedade não conseguiu se organizar em novos interesses artificiais que poderiam se tornar relevantes, uma vez que a base de todos os interesses naturais relevantes estava completamente satisfeita.
No subcapítulo “A Ilusão da Riqueza” do livro supracitado, discuto essa relação da satisfação que um pacote de consumo nos traz, com o risco envolvido na operação que nos leva a esse consumo.
O significado de uma conquista depende da sua vizinhança de riscos. O que tem 100% de chance de acontecer não terá influência na expectativa de ninguém, portanto não será base para avaliação de sucesso ou fracasso. Se o resultado de qualquer campeonato fosse conhecido antecipadamente, com 100% de segurança, não haveria interessados em torcer.
Nossa sociedade humana é bem mais complexa do que a dos ratos e nós depositamos significado em muitas outras formas de consumo, de relevância natural (subsistência) ou artificial (sociedade de consumo). Com a Pandemia, passamos a direcionar muito desses interesses e significados para o consumo online, para suprir um pouco do que os lockdowns e o afastamento social nos tirou.
A questão é que não sabemos se o tipo de consumo que estamos sendo forçados a assumir e desejar, não só de bens materiais, mas também de informação, de entretenimento, de educação, de cultura, de ciência etc., que são questões que poderiam ficar 100% online, guarda alguma relação com a nossa natureza fundamental, aquela que os ratos perderam e acabaram se matando e sucumbindo como sociedade.
Hoje vivemos um mundo cada vez mais segregado, em que pessoas de vida mais modesta continuam a procurar significado nas coisas simples, como trabalhar, ter família, cumprir a lei moral e natural, ser aceito em sua comunidade próxima, prover à família, etc., enquanto outro grupo está desconectado dessa realidade, buscando ressignificar os conceitos básicos sobre a vida, a história, a biologia, a sexualidade, o trabalho, o dever, a moral etc.
Nós sabemos lidar com os problemas objetivos da escassez material, nossa história evolutiva nos ensinou, mas não sabemos lidar com problemas que foram criados exclusivamente por essas reinterpretações e ressignificações. A rigor, se formos desconstruir as tradições, o idioma e a lógica aristotélica, podemos criar um número infinito de problemas que geram necessidades artificiais, oferecendo motivos ilimitados para as pessoas se sentirem incompletas, insatisfeitas e deprimidas.
O risco do vácuo existencial e da falta de conexão com princípios da ordem natural.
O experimento de Calhoun levanta uma questão relevante: sem desafios de ordem natural, as sociedades sucumbirão?
Nós logramos êxito, com o capitalismo industrial e financeiro, em reduzir significativamente as necessidades básicas das populações ocidentais, principalmente em países ricos.
Mesmo com esse sucesso, muitas pessoas ainda mantêm uma relação de necessidade com a regra moral, a ética, o dever, o respeito, a tradição, a religião etc., coisas que, mesmo para quem é muito rico, continuam sendo desafiadoras. Para quem acredita em Deus, a salvação é construída diariamente, com esforço incessante, não é algo garantido a quem tem poder de compra.
E mesmo para o iluminista, para aquele que passou a viver exclusivamente da fé na razão e na ciência, há as demandas filosóficas e científicas, as regras de ouro, os princípios lógicos e ontológicos, o desenvolvimento tecnológico, que o mantém interessado em conhecer mais para viver uma vida cada vez mais consciente.
Entretanto, para quem não reconhece nenhum princípio fundamental, que não se identifica com o desafio da vida religiosa/tradicional, ou com o desafio iluminista e positivista do conhecimento crescente e do autoconhecimento, uma vida de abundância material pode acabar extremamente vazia, o que leva essa pessoa ao risco, real, de buscar preenchimento com problemas artificiais criados exclusivamente por esse vácuo, por essa falta de significação e de propósito.
O temor é que essa crescente reformulação dos significados de coisas que sempre foram razoavelmente pacificadas, e que não clamavam por mudanças drásticas revolucionárias, apenas melhorias pontuais, crie problemas que não sabemos resolver. Que nosso trabalho, nosso esforço, nossa capacidade intelectual, nosso empreendimento social não sejam ferramentas úteis para prover a solução.
Para concluir, essa característica de “problematização” de tudo na sociedade ocidental, fruto de um pós-modernismo que nega qualquer princípio natural ou fundamental como válido e desejável para a estruturação das sociedades (relativismo), está enfraquecendo a sociedade ocidental. Perdemos o contato com princípios evolutivos básicos, pois nossas elites vivem como os nobres da corte de Luís XVI.
Em verdade é pior do que a situação de miséria da plebe, em contraste com a riqueza injustificada da monarquia, que levou à Revolução Francesa, pois Maria Antonieta era apenas ignorante, realmente não sabia que quem não tem pão, também não teria brioche (ou bolo), mas hoje a elite vai além da falta de empatia com a vida dos comuns, ela quer forçá-los a comportamentos que só fazem sentido num mundo desconectado da realidade de quem tem problemas básicos para lidar. E essa elite acaba adicionando problemas artificiais à vida já extremamente difícil do povo trabalhador, exigindo que ele cumpra regras arbitrárias de comportamento social que não fazem sentido para quem não vive revisitando certezas para fluidificar valores e semear confusão.
E nossa gente humilde até reconhece que madame enlouqueceu, mas em sua simplicidade se resigna e faz o que cantou João Gilberto, diante da patroa que queria acabar com o samba: pra que discutir com madame?

Linguagem neutra de gênero: por que as pessoas relutam em aceitar?
Esse é um tema tão polêmico que só o título já deve suscitar paixões e colocar o autor na difícil situação de ter que assumir um posicionamento sobre o tema.
Adianto que não vou me ater ao debate corriqueiro, que trata de correção ou incorreção gramatical, de agenda cultural, de dominação político-ideológica etc.. Meu foco será mostrar como os conceitos de Lei Natural e Positivismo nos afastam da aceitação da linguagem neutra de gênero (“LNG”).
Em outras palavras, provavelmente os argumentos aqui apresentados não serão os mesmos que a maioria das pessoas usa diante da questão, para justificar seu posicionamento.
A língua não é estanque, é fluida e muda com o tempo.
Esse é, provavelmente, o único argumento não ideológico e não político dos defensores da LNG. Afirmam que o idioma muda com o tempo, incorporando simplificações e alterações que se adéquam ao espírito de cada época.
Esse argumento não tem grande apelo junto aos detratores da LNG, pois os caminhos que fizeram “Vossa Mercê” se tornar “você”, Maracanã se tornar Maraca, ou processamento digital se tornar “renderização”, não tem qualquer relação com o caminho pelo qual se tenta impor uma forte alteração de regras gramaticais, forçando o abandono da regra culta, através da linguagem neutra de gênero.
Enquanto a língua se modifica, de fato, por processos naturais, simplificadores, promotores de entendimento, não destruidores da consistência linguística e, principalmente, não conflitantes com o objetivo básico de um idioma (a comunicação de qualidade), a LNG é um movimento que se força na língua, que se impõe através de propaganda massiva e coerção política. A adesão não é voluntária, mas obrigatória e forçada, até com punição social para quem não aderir.
Ninguém obrigou os usuários da língua culta a migrar de vossa mercê para você. Aconteceu e a história vitoriosa da simplificação foi escrita depois e incorporada ao idioma naturalmente, sem prejuízos à capacidade e à higidez da comunicação.
A Lei Natural como balizadora do comportamento e da verdade*
A Lei sempre representou algo que o indivíduo deveria seguir, pelo seu próprio interesse, como membro de uma sociedade. Para um indivíduo sozinho, onde não há a figura de conflito com outros indivíduos da mesma espécie, não é necessário um árbitro, pois não há situações a mediar.
Por questões históricas, que debato no meu livro “Tudo é Impossível, Portanto Deus Existe“, nos três primeiros capítulos onde trato da história da racionalidade e do relacionamento do Homem com o mistério, a primeira sensação de “Lei” derivava de nosso relacionamento com a natureza e da percepção de como deveríamos nos comportar para maximizar nossos objetivos, individuais e tribais. No início, o único objetivo realmente relevante era garantir a troca de energia (esforço que se transforma em alimento) e a proteção contra predadores.
Nos primórdios das relações humanas, o que mais havia era esse questionamento sobre os mistérios da natureza, dada a fragilidade do Homem. Por motivos que discuto também no livro, desenvolvemos um relacionamento com o mistério (aquilo que não se sabe) que derivou na construção de dogmas comportamentais, associados a relacionamentos com divindades, ou de um Deus todo poderoso (aquele que sabe o que não sabemos), que proveria caso seguíssemos essa Lei Natural, Revelada ou Divina.
E durante muitos séculos, os homens aceitaram algumas versões reveladas dessa lei de comportamento diante da natureza, da sua pequena comunidade e do mistério.
Em outras palavras, o Homem aceitou, por séculos, Deus e a Lei Revelada, como árbitros da verdade e da conduta social.
A Lei Positiva como balizadora do comportamento e da verdade
Com o desenvolvimento da ciência e com o poder crescente do método científico para nos explicar o que sempre havia sido mistério, cuja compreensão outrora estaria ao alcance apenas de Deus, houve uma migração, pós-iluminismo, para um balizador racional, a Lei Positiva, Racionalista ou Demonstrada.
Enquanto para a vida privada e para sua comunidade próxima o homem continuava utilizando a Lei Divina como balizadora da ação moral, individual ou coletiva, nos debates públicos, em que se precisava definir um padrão de comportamento e moral para toda a sociedade, gradualmente a razão formal e a lógica aristotélica da não contradição, foram assumindo papel fundamental como árbitros de conflitos provenientes da ação natural do Homem.
De forma resumida, o Homem aceitava Deus como árbitro dos conflitos humanos, naturais e inerentes da vida complexa que vivemos, até hoje aceita, porém, parou de forçar o argumento teológico e dogmático na esfera do debate público. Nessa esfera de debate, o argumento passou a ser racional e objetivo, com base no Positivismo e no Racionalismo.
Ambas as instâncias arbitrais, Revelação e Razão, trazem elementos de tradição, ou seja, a Lei tende a ser conservadora e evita ao máximo a revolução, sob risco de ver desmoronar o edifício legal construído em milênios de análises, de práticas, de jurisprudências e avaliações da ação humana, para desenvolvimento de códigos de conduta que enriqueceram a sociedade e que a fizeram cada vez menos injusta.
A Linguagem Neutra de Gênero não encontra respaldo no Direito Natural ou no Direito Positivo.
O Homem aceita ser julgado por Deus e/ou aceita ser julgado por um arcabouço legal construído com base na razão e na filosofia do direito positivo, mas não aceita ser julgado por um ato revolucionário sem respaldo em alguma espécie de tradição ou racionalidade formal.
O “faz o que eu mando”, não funciona com indivíduos adultos e livres. Para ele entregar a terceiros o julgamento do que é certo ou errado, é preciso que esse terceiro seja reconhecidamente um perito, que se vale da tradição que sobreviveu ao teste do tempo, ou de justificativa racional inequívoca (lógica aristotélica) ou suficientemente demonstrada de forma empírica.
A justificativa de criar uma linguagem nova, que não permita que alguém se sinta ofendido, tem vários problemas. O primeiro é achar que a linguagem é objetivamente ofensiva, ou seja, que uma palavra ou um uso gramatical seriam, independentemente da situação subjacente, ofensivos. Não são. Basta ver a mais bem-sucedida campanha contra uma palavra na história do movimento identitário: a proibição da N-word. A N-word é totalmente proibida nos EUA, mas apenas para brancos. Comediantes negros usam o tempo inteiro, e todos acham graça. Inclusive os brancos, que não podem usá-la (é tão proibida e estigmatizada, que não vou usá-la aqui, infelizmente o leitor precisará procurar no google, caso não conheça a expressão).
A pessoa não-negra não usa, por força da coerção social e dos riscos de cancelamento e processos penais que correria se usasse, mas não por força de convencimento com base na Lei Revelada, Natural ou na tradição, ou na Lei Demonstrada, da razão e da razoabilidade.
Um segundo problema é submeter o objetivo principal da linguagem, que é promover a comunicação de qualidade entre indivíduos que compartilham aqueles códigos, a uma agenda de supremacia ou combate à supremacia de alguns poucos indivíduos que impõem sua vontade social e política de forma coercitiva. A Agenda nunca é de um grupo social inteiro, mas de um grupo mais ativo na militância.
Essa questão do uso da linguagem como elemento de controle e dominação, através da alteração constante de seus significados, não é nova e foi tema do livro 1984, com o dicionário da novilíngua, que ensinava as pessoas a ter raciocínio inconsistente e ilógico, o que garantia o poder permanente ao regime, pois neutralizava a capacidade de criticar. Quem não consegue reconhecer uma inconsistência intelectual não é racional. Quem não consegue reconhecer uma inconsistência intelectual não é íntegro o suficiente para ser confiável.
Recentemente até o Putin lembrou que essa estratégia de usar a linguagem como elemento político, através da alteração constante de seus símbolos e significados, era corriqueira na URSS. E deu errado, segundo o próprio Putin, que tinha papel de destaque naquele regime.
Não há caminho natural ou negocial para aceitação ou convencimento da LNG
Para quem delega o direito de arbitrar sobre o que é certo ou errado ao Direito Revelado ou Natural (palavra de Deus ou de acordo com a natureza do Homem) ou ao Direito Demonstrado (direito positivo, baseado no sistema lógico), a LNG não tem apelo.
A LNG não é, evidentemente, uma verdade revelada, não é a Palavra de Deus, na verdade nem é tema de debate nas escrituras, apesar da questão subjacente, do gênero e da sexualidade, ser tratada nas escrituras e, também nesse caso, as variedades de gênero e/ou sexualidade fluida propostas pela modernidade, também não encontram respaldo nas tradições reveladas.
Já no direito positivo, no debate público focado na razão, a questão da igualdade perante a lei é facilmente demonstrável como uma evolução civilizatória. Sempre que houver defesa de direitos civis, a racionalidade aristotélica vai conseguir ser usada para arbitrar questões de liberdade individual e coletiva.
Porém, no caso específico da LNG, a questão não é de direitos civis, nem é para ser matéria de lei positiva.
Ao contrário, as leis que garantem a liberdade individual e o direito à crença, protegem o indivíduo de ser obrigado, sem qualquer plausibilidade técnica ou social, a respeitar regras gramaticais fluidas criadas por pequenos grupos militantes sem qualquer discussão ampla na sociedade e, principalmente, criadas por gente sem qualquer expertise em linguística.
Uma coisa é alguém pedir para ser chamado de “ela”, entendo que, em termos de regras de convivência social, é razoável que alguém possa ser chamado do que quiser, outra coisa é criar regras gramaticais sem respaldo na técnica linguística, e forçar as pessoas a seguirem, com criação de palavras e significados fluidos que não fazem sentido para a maioria esmagadora das pessoas. E criar punições e perseguições públicas para quem erra seu uso, transformando o erro em transgressão moral, passível de punições graves.
Conclusão
A questão não é técnica ou de justiça, não é de direito ou de idioma. Se fosse, os argumentos seriam técnicos e aristotélicos, ou seja, sem contradição desnecessária e colocados da forma mais objetiva possível.
As pessoas têm uma dificuldade enorme de aceitar a LNG, pois não delegam seu julgamento sobre o que é certo e errado de forma leniente, a qualquer um e a qualquer apelo. A maioria das pessoas muda de opinião sobre algo importante com base em um misto de tradição e racionalidade. Para os mais religiosos, a tradição falará mais alto e a racionalidade precisará ser impecável, para movê-los ao novo entendimento. Tem sido essa a história do Ocidente há 500 anos. Para os racionalistas/positivistas, idem, a racionalidade também precisa ser impecável para substituir uma outra crença intelectual firme e enraizada.
Como a base da imposição social da LNG não é racional ou tradicional, é de interesse de grupos, que não deveriam ter ascendência política sobre outros grupos, as pessoas relutam em aceitar e provavelmente não o farão voluntariamente.
Resta a técnica da URSS, coerção. No mundo moderno isso se dá através dos cancelamentos sociais, do menosprezo à posição religiosa, da penetração nos principais meios de comunicação e na inclusão da exigência da LNG em várias instâncias culturais, como cinema, teatro, escolas, currículos, trabalho etc.
É um momento delicado para a humanidade. A Lei Natural dialogava com a Lei Positiva, através da razão e da razoabilidade. Ambas não dialogam com o irracionalismo pós-modernista, que transforma todos os elementos da cultura humana em armas de guerra político-ideológica.
Dá para o mundo ser melhor do que hoje, sem necessariamente voltarmos ao passado, mas me parece que essas imposições revolucionárias contra a tradição e a razão não são o caminho. Podem levar a mais sectarismo e afastamento.
* Eu não utilizo a expressão Lei Natural (ou Direito Natural) na minha abordagem filosófica, pois julgo ser mais uma convenção natural do que uma Lei propriamente dita. Mas para os objetivos desse texto, a expressão funciona sem reparos.
