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Goliath, Dr. Bull e como o mundo via a medicina antes da Pandemia.
Já há alguns anos diagnostiquei a origem de minha predileção por seriados americanos de advogados e tribunais. A angústia de viver em um país onde a justiça não funciona e a impunidade impera transforma esses seriados em terapia de longo prazo.
Na ficção, na maioria das vezes, a justiça prevalece, a lei burra é derrotada pela moral superior, a autoridade que abusa é contida, e os bons valores, a boa razão e a boa-fé constituem o fundamento básico do sistema legal.
É uma forma de desopilar, de ter esperança, ainda que na ficção, de que o bem acabará por prevalecer.
Goliath, Dr. Bull, a indústria farmacêutica e os médicos heróis.
Recentemente terminei uma série com Billy Bob Thornton, em que o ex-marido de Angelina Jolie representa um advogado defenestrado de um dos maiores escritórios jurídicos dos EUA, que passou a enfrentar, sozinho, adversários imensos e poderosos. O nome da série é Goliath, em alusão à luta desproporcional entre o pequeno Davi e o gigante Golias.
O embate desproporcional da última temporada é justamente contra as grandes farmacêuticas, retratando a epidemia de vício em opioides nos EUA. Os números recentes indicam cerca de 50.000 mortes por overdose de “pain killers”, com um custo de US$ 78 bilhões a cada ano. E milhões de pessoas vivendo na dependência, um desastre para si mesmos e para as famílias.
O que se vê nos 8 episódios da temporada é o que o mundo sempre pensou das grandes farmacêuticas e de seu relacionamento com o poder público e político:
- FDA não tem dinheiro para fazer os testes, portanto aprova a partir de testes feitos pela própria indústria.
- Propinas a agentes reguladores, presentes extravagantes e prêmios milionários para os médicos que mais prescrevem, cursos em resorts caríssimos para profissionais de saúde conhecerem as maravilhas dos opioides, favores a juízes etc.
- Ciência fajuta, negação da capacidade de viciar (como a indústria tabagista fez por anos), efeitos colaterais ignorados, efeitos de longo prazo abafados.
- Lobby para ampliar a base de usuários, antes de uso restrito a pacientes com dor excruciante, agora receitado até para dor muscular temporária em atletas.
Por acaso, ao terminar a série, coloquei o 18° episódio da segunda temporada de Dr. Bull, um cientista forense que ajuda pessoas a vencer pleitos em tribunais do júri.
Esse episódio contou a história de uma Dra que receitava óleo de canabidiol (derivado da maconha) para seus pacientes na Virgínia, porém precisava comprar em Nova Iorque, pois no seu estado era proibido o uso.
A Dra conheceu a substância após ver o filho definhar em uma quimioterapia contra leucemia, e passou a usar o remédio para seus outros pacientes, que viviam em grande desconforto, falta de apetite, dor e náusea.
Após ser parada pela polícia, levando o remédio para seu estado de origem, foi presa e toda a força do governo federal pesou sobre sua cabeça. Ameaça de prisão federal por 20 anos, conselho tutelar tomou o filho dela alegando maus tratos e que a criança não estava recebendo tratamento adequado, colocaram médico burocrata para depor, que nunca usou o remédio, para fazer a caveira dela, tratando-a como criminosa, tentaram cassar sua licença, transformá-la em uma incompetente etc.
Em ambos os casos, nos seriados, a vitória do povo miúdo, do little guy, foi acachapante. A palavra final no tribunal do júri é de representantes do povo americano e eles entregaram a justiça e a moral em sua melhor estirpe, contra dois Golias, o governo federal e a indústria farmacêutica.
E me senti mais leve vendo, ainda que na ficção, uma vitória maiúscula do que considero moralmente correto, limpo, liberal e honesto.
Mas isso era antigamente… em tempos imemoriais… em 2019.
Hoje não é mais assim.
A indústria farmacêutica se transformou em bastião da moralidade, da técnica, da prudência, da temperança, da ciência, da ética, enfim, o oráculo da saúde pública.
Em poucos meses, uma história que as pessoas entendiam ser regada a propina, cooptação de agências governamentais, talidomida, junk Science e conflito de interesses se transformou numa fábula maniqueísta em que a indústria representa o bem absoluto e não pode, de forma alguma, ser questionada, pois é a nossa única salvação.
Não há nada que você possa, individualmente, fazer. Não há exercício, não há vida saudável, não há alimentação equilibrada, não há reforço da imunidade natural que possa ser feito. Tudo aquilo que você aprendeu no passado para cuidar da sua saúde, esqueça!, entregue para quem entende, a indústria resolve. E se questionar, é negacionista!
Ao mesmo tempo em que canonizavam a Big Pharma, passavam a demonizar os médicos interessados em salvar vidas. Aqueles com o mesmo perfil dos autodidatas que, por quase uma década, atenderam pacientes com HIV, contra a recomendação da FDA e o contra próprio Dr. Fauci (ele mesmo), descobrindo em meses coisas que a indústria e o sistema regulatório ou levaram anos para referendar, ou nunca o fizeram.
O curioso é que a gente conta essa história do atraso da FDA na aprovação de um tratamento para a AIDS, hoje em retrospectiva, demonizando a indústria, a FDA, Dr. Fauci e a própria burocracia do governo americano, e idolatrando os médicos que colocaram as carreiras em risco para ajudar os pacientes quando a burocracia estatal, o interesse da indústria e os “médicos algoritmo” se recusavam, e mesmo proibiam as intervenções que eram a única opção de quem via a morte cada vez mais perto.
Agora no último biênio, a história se repete, com script idêntico (veja a carta escrita em 1988 contra o Dr. Fauci) e com os mesmos personagens, e nós que, até 2019 não tínhamos dúvida sobre qual era o lado certo, hoje somos versões diferentes de nós mesmos.
Onde estão aquelas pessoas?
Fico me perguntando, por que pessoas que, até 2019, claramente defendiam a autonomia médica, desconfiavam da corrupção da grande indústria, aplaudiam Patch Adams, choravam com Óleo de Lorenzo, vibravam com a coragem dos contrabandistas de antirretrovirais em Clube de Compras Dallas, passaram a ser fervorosos defensores de tudo o que condenavam no passado, e se tornaram ferozes algozes de tudo o que defendiam, também no passado recente?
Isso não é bom. Quando a pessoa muda dessa forma, a gente perde a confiança. A razão não é apenas uma técnica para resolver problemas objetivos, é também um dos balizadores da moral e do caráter. A razão permite que você fundamente para si mesmo suas ações e consiga se qualificar, aos seus próprios olhos e aos olhos da sociedade, como uma pessoa íntegra. Ser íntegro significa não ser uma coletânea de partes difusas e inconsistentes. Não ter 2, 3 ou 20 caras. A confiança que temos na sua personalidade, no seu julgamento e no seu comportamento é o que diferencia você de todo o resto. Uma pessoa de moral e racionalidade fraturadas e fragmentadas é uma pessoa cotidianamente irreconhecível.
Hoje, com pesar, vejo que as pessoas estão pacificadas em representarem publicamente versões diferentes de si mesmas a cada nova demanda social. Se as redes exigirem que se acredite em algo que conflita com o que se acreditava antes, e as pessoas aderem imediata e irrefletidamente, pois o like aparece na telinha e o reconhecimento momentâneo é reconfortante, ainda que isso o afaste daquele “eu” que você foi um dia. Ontem.
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