A Pirataria, a Incompetência Empresarial e uma Solução Jurídica Original
Recentemente um órgão internacional de proteção aos direitos autorais revelou que o Brasil era o segundo país onde mais se baixa ou se utiliza, irregularmente, conteúdo protegido, atrás apenas dos Estados Unidos.
Parece que o maior problema seria com games, segundo eles.
Eu não vou “chover no molhado” discutindo a moralidade, legalidade ou as implicações da atitude de usar conteúdo protegido sem pagar, ou pagando muito pouco. Não é o objetivo desse artigo.
Pretendo sugerir que a legislação atual, que criminaliza de forma direta e objetiva a atitude da pirataria, é contraproducente e atrapalha demais o desenvolvimento dos mercados de direitos autorais.
A incompetência empresarial
Temos um modelo de entendimento a respeito do mundo empresarial e financeiro extremamente equivocado.
O fato de alguém ser rico, bem sucedido, não faz dele, necessariamente, uma pessoa brilhante.
Na maior parte das vezes, as pessoas são ricas porque compram algo por R$ 10,00 e vendem por R$ 20,00. E fazem isso milhares de vezes por mês.
Essa mesma pessoa não estaria apta, só por ter feito fortuna, a opinar sobre estratégia empresarial, desenvolvimento da indústria ou o futuro da nação. Muitas vezes é apenas um bom comerciante, ou teve uma boa formação técnica e ocupa um cargo de destaque em algum grupo empresarial.
Eu compartilho do entendimento de Carl Icahn e outros investidores ativistas dos EUA, de que as Companhias são, na maioria das vezes, geridas de forma pobre, pouco criativa e pouco inteligente. E na maioria das vezes o sucesso vem por acaso.
Infelizmente o recente boom das commodities no Brasil mostrou isso. Dependendo do vento, até tijolo voa. Ventou muito. Pouca gente continuou voando quando o vento acabou. Quase ninguém, nem o próprio país.
A lógica de Icahn, da qual compartilho, é que a vida empresarial no topo tende a ser conservadora, tende a se preocupar, principalmente, em manter o status quo, na marra, com hordas de advogados, se for necessário.
O Napster
Creio que o primeiro grande caso que me incomodou foi o da briga da indústria fonográfica com o Napster.
Escrevi sobre isso em 2001 e enviei para a Enanpad, apenas para deixar registrado. No artigo sugiro uma visão de futuro completamente diferente para a época, mas hoje meio óbvia. A seguir, para quem quiser ler em retrospectiva.
O Napster foi o primeiro grande sucesso no compartilhamento de arquivos, quando a internet ainda era, praticamente, uma tartaruga discada. Chegou a ter 100 milhões de usuários, o que para o início dos anos 2.000 era um feito e tanto!
A indústria fonográfica viu no napster uma ameaça, eu vi a redenção. Eu vi, com clareza, um modelo que poderia reduzir extremamente a ineficiência da própria indústria.
Indústrias têm objetivos sociais, aqui não falo de filantropia ou responsabilidades socioambientais, falo da tal “razão social”, o que ela agrega à sociedade e o que faz a sociedade pagar por esses benefícios.
A indústria do entretenimento nos traz estímulo sensorial. Nos traz sentimentos, vibração, memórias, amor, raiva e tudo o que aquela música ou filme conseguir despertar no “consumidor de sensações”.
A razão social ERA distribuir e entregar CDs ou DVDs, quando isso exigia parrudos investimentos em logística. Esse ERA o valor agregado. Não é mais e a indústria demorou a ver isso.
O Napster fez coisas incríveis. Fez você consumir esses sentimentos de outra forma. Não precisava mais comprar 10 músicas para ouvir uma. Não ficava à mercê de um sistema de distribuição e de promoção para ouvir uma música “fora de catálogo”, esperando um “The Best Of”. Não precisava gastar horas no rádio tentando gravar sua música antiga favorita.
E o que fez a indústria contra um garoto que, sozinho, revolucionou o sistema de distribuição de sensações?
Bom, dentro do ambiente empresarial a atitude, conservadora, hipócrita e, claro, destruidora de valor, foi iniciar uma guerra jurídica para destruir o Napster.
Não se deve ouvir seu corpo jurídico nessas horas. Não são especialistas nos negócios que defendem e, jamais, irão sugerir algo que lhes tire as “billable hours” do litígio sem fim.
A estimativa à época era de que a indústria gastou alguns bilhões de dólares, e muitos mais adiante, para destruir um modelo que, obviamente, viria a ser vitorioso NA MARRA anos mais tarde. E a indústria, praticamente, quebrou.
A guerra jurídica e a destruição de valor
Tenho muitos amigos defensores do liberalismo econômico puro, acreditam que o “mercado” resolverá suas inconsistências.
Tendo a concordar com eles em muitas coisas, mas não concordo que o mercado seja virtuoso a ponto de nos criar SEMPRE mais valor.
Na verdade acho que a evolução é no sentido de gerar valor, mas, muitas vezes, o corpo empresarial, político e jurídico atuam para nos atrasar por décadas.
Lembro-me de dizer várias vezes a um amigo que trabalhava na Microsoft, isso há mais de uma década, que o modelo de negócios estava errado. Não fazia sentido vender software caro, era muito mais inteligente alugar barato.
Até acho que os dirigentes da pequena e mole (Microsoft) sabiam disso, mas a justificativa era essa: “It´s a multi-billion dollar business”. Não se mexe com isso.
Os libertários acreditam na virtude mundo empresarial, para nos levar a um mundo melhor. Lamento, mas o mundo empresarial, na maioria das vezes, só discute quanto tempo mais eles precisam para amortizar seus investimentos.
Talvez pudéssemos, num mundo ideal de concorrência, onde os lobbies, os corpos jurídicos e os empresários jurássicos estivessem em segundo plano, ter carros a hidrogênio ou movidos a flatulência, ter energia gratuita em casa, ter descoberto a cura do câncer e da Aids, entre outras coisas.
Não temos esses benefícios e jamais saberemos se foi por incompetência técnica, ou porque “you don´t mess with a multi-billion dollars business”. Nas planilhas, tem que se usar AZT e gasolina por mais uns 20 anos para pagar os planos de negócios, as TIRs e os VPLs.
Esse é o mundo, desculpem pela franqueza.
Existe um mundo pior, entretanto. Está na Coréia do Norte, em Cuba etc., onde nem os “multi-billion dollars businesses” existem. Existe apenas o Estado.
Agora me desculpo com o “outro lado”, os estatistas. É inacreditavelmente pior assim.
Bill Gates e Steve Jobs
Recomendo ler sobre a vida de Steve Jobs. Ele levou sua Apple às alturas com um monte de loucura empresarial. Em determinado momento contratou o “melhor CEO do mundo”, que vendia água com açúcar e corante (Pepsi).
Em pouco tempo o conselho de administração, que representa quem colocou grana no negócio, expulsou Jobs da empresa para implantar um regime trivial de planos de negócios, taxas de retorno e outras tecnicalidades financeiras.
Como disse no início, dependendo o vento até tijolo voa. No caso, o fim do vento foi a demissão de Jobs. Foi taxado de maluco por querer vender um computador que custava US$ 2.000 por US$ 999. E parece loucura, mas em vez de forçar a engenharia a reduzir esses custos, a Apple trilhou o caminho dos burocratas das taxas internas de retorno e quase faliu.
Talvez falisse com Jobs também, à época, se não fosse possível baixar os custos. Mas custos são diminuídos com boa técnica. Genialidade não se encontra em CEOs que seguem a cartilha do Conselho de Administração, sem questionar.
Jobs voltou e, utilizando muito do que o Napster nos ensinou (com o Ipod), levou a empresa a valer mais do que todas as empresas brasileiras listadas em bolsa juntas.
Recomendo também o filme “Os piratas do vale do silício”, que conta a história de Jobs e de Bill Gates. Piratas que hasteavam bandeiras de piratas.
Bill Gates não é bobo. Usou a pirataria para levar a Microsoft ao monopólio do sistema operacional.
Quem usa Windows há 20 anos ou mais sabe que era caríssimo no início. Um pacote Office com Access era quase impagável para uma pessoa física ou para pequenas empresas.
Mas a pirataria de Windows era recorrente, quase a totalidade dos domicílios brasileiros, que tinham computadores, não tinham cópias legalizadas. Chego a afirmar que, mesmo em empresas, a maioria dos softwares era pirata.
Vale lembrar que, na década de 1990, os computadores não vinham com Windows. Não era fácil e barato como hoje.
E o esforço contra isso, por parte da Microsoft, era mínimo, no início, quando o Windows ainda não era o padrão mundial de sistema operacional.
Se Bill Gates tivesse gastado bilhões para destruir essa pirataria inicial, e efetivamente conseguisse garantir que apenas quem comprasse usaria o Windows, COM CERTEZA, outros sistemas operacionais apareceriam e o Windows jamais teria esse monopólio. Provavelmente nem existiria mais.
A pirataria foi a maior aliada de Bill e ele sabe disso. A facilidade de usar Windows e a suíte Office fez com que, naturalmente, as pessoas só soubessem usar isso. As empresas contratavam pedindo conhecimento em: Windows, Excel, Word etc.. Olha que reserva natural de mercado!
Creio que a prova disso é que nem sistemas operacionais gratuitos, ou planilhas gratuitas conseguiram tirar da Microsoft seu monopólio.
Bill, se pudesse, agradeceria a todos os bilhões de piratas que fizeram do Windows o padrão da computação doméstica e empresarial.
A pirataria como reguladora da incompetência empresarial no mundo do entretenimento
É claro que, quando você vira um “multi-billion dollar business” você abandona a pirataria e faz contas sofisticadas, para demonstrar que, por exemplo, uma superinovação precisa esperar de 5 a 10 anos para ser lançada, para não prejudicar os produtos atuais.
E assim caminha a humanidade. Refém das taxas internas de retorno, do judicialismo, dos lobbies para afastar a concorrência e esconder a podridão etc..
Parece-me óbvio, muito óbvio, deveras óbvio, que a modelagem atual de consumo legal de conteúdos protegidos, como Netflix, Itunes, You tube etc., existe porque se impôs na marra.
Existe porque a indústria falhou no protecionismo jurídico e policial. Apesar de AINDA tentar combater esses meios, pelos quais a maioria dos seres humanos vê e ouve seu entretenimento sensorial.
O que é um crime?
É o que está tipificado no código penal.
Quando você gravava os discos emprestados de um amigo num K7, ninguém via nisso um crime. Ainda que pudesse ser.
Há alguns anos, se você soprasse um bafômetro depois de 1 copo de cerveja, seria liberado. Se soprar hoje, será processado como criminoso.
Quem define é o legislador. O que era comum há 20 anos, hoje talvez seja crime inafiançável.
Se o Estado quiser, o cidadão jamais conseguirá viver dentro da lei. Você pode ser processado, por exemplo, por pagar um engraxate de 12 anos. Será estímulo ao trabalho infantil.
O Estado precisa entender que não está lá para isso.
Como o legislador poderia proteger os conteúdos e seus proprietários e, ao mesmo tempo, exigir contrapartida empresarial?
Em vez de, simplesmente, dar garantias de uso da força policial e judicial do Estado contra os consumidores irregulares de conteúdo protegido, deveria exigir que a proprietária dos direitos dê a opção de compra, com as mesmas facilidades, para o consumo do conteúdo.
Explico.
Um filme recém-lançado no cinema.
Para ver esse filme há que se consumir vários outros serviços ou produtos. Gasolina, transporte público, estacionamento, salas, ar-condicionado, energia elétrica, projetores, películas, manutenções etc.
Para quem tem filhos, uma ida ao cinema a 2 pode custar fácil 300 reais, entre baby-sitter e esses consumos casados.
Como é evidentemente possível fazer esse conteúdo chegar com qualidade às casas, entendo que os detentores dos direitos só devam estar aptos, juridicamente, a interpelar quem baixa conteúdos irregularmente se houver a possibilidade de compra pelo meio mais simples, sem vendas casadas.
Aos protecionistas, um parêntese.
Dizer que os cinemas poderiam ir à falência NÃO é um argumento razoável, é protecionista e cartorial. Um negócio deve existir porque agrega valor e não porque é a única forma que a lei ou a indústria nos permite para ver um lançamento.
O cinema vencerá, com certeza, por oferecer segurança, telas e sons maravilhosos, um escurinho para abrigar os namorados, uma pipoca, som, enfim, por ser um EVENTO em si, e não pelo protagonismo imposto por um modelo de negócios arcaico.
Voltando ao novo modelo jurídico…
Imagine se os detentores dos direitos autorais fossem obrigados, para poder interpelar judicialmente um consumidor pirata, a oferecer opções de compra, sem venda casada, ou da mesma forma que ele consegue ver em casa.
Tenha certeza de que o streaming de vídeo já seria o que é hoje em 2004, o Netflix e afins seriam hoje, provavelmente, maiores do que a TV aberta e até do que a TV paga. O Youtube seria hoje, o que será apenas daqui a 10 anos.
Poxa, mas isso iria reduzir a rentabilidade de outras indústrias?
Ai, ai, ai! Olha a verve protecionista atacando de novo!
O que não é justo é que o mundo se atrase apenas por conveniência de gente que não quer inovar, de empresários de planilhas e de VPLs calculados para projetos de 10 anos.
Não é justo que se gaste bilhões de dólares em lobbies do atraso e com corpos jurídicos que existem para proteger esse atraso, em vez de criar modelagens que efetivamente agregam valor ao consumidor.
Encerrando.
O mundo de hoje é estranho. Há mecanismos claros para que os modelos de consumo de entretenimento sejam revolucionados a cada ano. A cada minuto até.
Mas o que fazemos?
Preferimos criminalizamos 35% da população suíça. Isso mesmo, aquele país com 3 homicídios por ano, 7 roubos, tem cerca de 3 milhões de usuários ilegais de conteúdo protegido.
Esses suíços são uns picaretas! Cadeia neles!
Parabéns pelo artigo Prof. Paulo Portinho. Tenho comigo que o empreendedorismo da nova geração será capaz de revolucionar o mundo dos negócios o qual vivemos hoje. Percebo em muitos jovens empreendedores o desejo de mudança, de fazer a diferença para a humanidade, não apenas ganhar dinheiro. Se tivermos um Estado capaz de ao menos não atrapalhar, tenho certeza que mentes brilhantes como Jobs irão surgir a cada ano e com isso mudaremos definitivamente o Status quo dos grandes negócios.
Thiago Fukui
14/03/2016
Grande Thiago. Concordo com você. Se entrar alguém que não atrapalhe, a gente crescerá forte.
Portinho
14/03/2016
Portinho, vi no seu artigo sobre o Raciocínio Sistêmico, assunto pelo qual sou fascinado… Por favor, você tem alguma indicação de livro / site / artigo sobre esse assunto?
Desde já agradeço e parabéns pelo excelente artigo!
Rodrigo
11/03/2016
Oi Rodrigo, acho que o ponto de partida é o livro A Quinta Disciplina do Peter Senge.
Portinho
11/03/2016
Voltou inspirado hein! Excelente post. Abraço!
Fernando
11/03/2016
Obrigado!
Portinho
11/03/2016
Apesar de compartilhar de grande parte das ideias expostas, gostaria de saber como você, sendo também um autor, reagiria se um de seus livros passasse a ser livremente distribuído pela internet através de um arquivo pdf.
R.S.
10/03/2016
Super pertinente sua colocação. Ajuda a esclarecer melhor o artigo. Agradeço demais pela oportunidade.
Os meus livros são fáceis de comprar, seja em meio físico (online principalmente) ou em meio eletrônico. São fáceis e acessíveis, pois a versão online é bem barata.
Se o meu livro fosse retirado pela editora e não houvesse opção de compra, entendo que poderia ser justificável que algum interessado busque outros meios. Até um sebo, por exemplo, não me faria ganhar mais nada, mas não é considerado pirataria. Se meu livro circulasse 10 vezes num sebo, ou 20 vezes em empréstimos de biblioteca eu também perderia 20-30 possíveis compradores. E nada disso é proibido. As pessoas precisam ter acesso facilitado aos conteúdos.
Se George Orwell escrevesse 1984 e guardasse para si, não teria relevância. Mas lançou e ajudou a formar o pensamento da humanidade.
Seria justificável que a editora não o relançasse, por questões comerciais, para forçar a venda de novos autores? Seria relevante que o conteúdo não circulasse, por interesses comerciais, ou simplesmente por desleixo ou falta de prioridade no plano de negócios?
O conteúdo relevante não é uma entidade objetiva, não existe por si. É relevante pela interação das pessoas, pelo valor que atribuíram a ele, ao longo dos anos.
Por isso a proposta do artigo é um apelo à responsabilidade social de ambos, consumidores e indústria. Nem seria aceitável usar sem pagar, nem seria aceitável impor consumo casado para veicular o conteúdo, ou sonegar a possibilidade de compra em meios alternativos e confortáveis (se existirem).
Proibimos venda casada de financiamento imobiliário e seguro do imóvel, mas aceitamos que um cinéfilo seja obrigado a consumir vários serviços não essenciais para ver um filme. Em 1990 era caro e justificável distribuir um conteúdo, mas em 2016 é somente preguiça empresarial não oferecer modelos mais eficientes para consumo desse conteúdo.
Penso que, se a legislação fosse dessa forma proposta, em vez de gastar bilhões de dólares atrasando o progresso, para manter os planos de negócios, viveríamos num mundo mais dinâmico, moderno e feliz!
Abraço e obrigado pela visita.
Portinho
10/03/2016
Seu melhor post até hoje!
Carlos Roberto Longo Staino
10/03/2016
Obrigado Carlos!
Portinho
10/03/2016